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O que é natural: conceito que influencia os debates sobre gênero e sexualidade

Resumo

Este artigo traz uma discussão sobre a necessidade de se rever o conceito envolvendo a palavra natural nas discussões sobre a diversidade da expressão da sexualidade e da identidade de gênero, tanto nos meios públicos, quanto acadêmicos. Discute-se o uso da estratégia da desmontagem ou desconstrução e análise de termos de enunciados de discursos discriminatórios, buscando a ressignificação dos mesmos sob a luz de ciências atuais diversas. São apresentados algumas contribuições das ciências contemporâneas para a melhor compreensão do que seja natural quanto ao comportamento sexual humano e construção de identidade de gênero. Conclui-se que é natural a diversidade da expressão da sexualidade e que existe a necessidade de uma revisão de conceitos usados em muitos discursos de maneira a tornar possível suas ressignificações para um combate eficaz a discriminações de natureza sexual e de gênero.


O QUE É NATURAL: UM CONCEITO QUE INFLUENCIA PROFUNDAMENTE OS DEBATES SOBRE IDENTIDADE DE GÊNERO E DIVERSIDADE DA EXPRESSÃO DA SEXUALIDADE

Introdução

O conceito do que é natural está no centro da maioria das discussões sobre o gênero e sexualidade humanos. Argumenta-se, do ponto de vista conservador, nos debates públicos e até acadêmicos, especialmente observados nos debates brasileiros, que as variantes de gênero que vão além do identificável pelo sexo biológico, bem como as formas diversas de expressão da sexualidade que não correspondam a heterossexualidade cis1, estariam fora dos limites da natureza humana, portanto, configurando uma construção social, considerada por alguns setores sociais até mesmo como contrária a natureza.

Este artigo busca fazer uma reflexão com alguns aspectos pertinentes a este debate específico, trazendo elementos analisados pela ciência contemporânea, no intuito de se fazer uma crítica a este discurso.

Nos debates públicos a respeito das origens das chamadas diferenças sexuais e da natureza das relações entre mulheres e homens – debates esses conduzidos na mídia, nas interações cotidianas e nos discursos acadêmicos – são feitas uma série de afirmativas que empregam palavra “natural” de maneiras fundamentalmente enganadoras. Estas afirmativas são de vários tipos, mas traço em comum de muitas delas é que descrevem as diferenças estabelecidas entre mulheres e homens na vida social como se fossem originárias da biologia. (MOORE, 1997, p. 1).

Em muitos discursos discriminatórios da identidade de gênero e da diversidade da expressão da sexualidade, especialmente representada pela homossexualidade, a palavra natural, opera como um preconceito, pois o que se considera como natural é um conceito simplesmente pré-definido, em muitos debates, pela tradição de nossa cultural ocidental. “As palavras têm sempre uma história. E fazem a história também. Pensar o “peso das palabras” é indagar sobre sua relação com a história, tanto com aquela que as fez quanto com aquela para a qual contribuem”(CUCHE, 2002, p. 17).

Por isto, o significado que se tem em consideração pela palavra natural, nestas discussões, precisa ser mais profundamente compreendido, à luz do conhecimento científico atualizado e, se necessário, revisto.

A influência Religiosa

O questionamento sobre o que é natural na diversidade da expressão da sexualidade e do gênero ocupa o centro do debate de algumas importantes questões religiosas que envolvem a sexualidade, onde se atribui ao que foge da norma a qualidade de anti-natural, significando pecado ou erro, do ponto de vista da cultura religiosa de base judaica. No caso ocidental, a cultura cristã incorpora de sua origem judaica os conceitos sobre sexualidade que normatizaram a cultura e que a influenciam até os dias de hoje. Esta normatização influi diretamente na luta sobre os direitos de diversidade sexual, de identidade de gênero e de reconhecimento dos indivíduos como cidadãos plenos em nossa sociedade.

O conceito sobre o natural, é apresentado nas sagradas escrituras judaico-cristãs, uma das bases da cultura ocidental, como um parâmetro a ser usado para entender a expressão do gênero e a sexualidade, e foi cunhado sob o ponto de vista da antiga sociedade judaica, mais especificamente sob a influência da lei mosaica. Este padrão de normatização, que reconhece como legítimas apenas as relações sexuais heterossexuais e apenas dois gêneros definidos, associados diretamente ao sexo biológico, sem variações, foi herdado pelo cristianismo e adentrou às sociedades ocidentais que tiveram sua cultura modelada pelo mesmo, mas que tinham anteriormente até mesmo padrões de normatização diferentes, como no exemplo da sociedade grega, na qual a homossexualidade era tida como coisa natural e normal. A expansão do cristianismo no ocidente naturalizou o heterossexualismo como norma.

Torna-se importante destacar ainda que, na história de nossas sociedades, entre outras de suas expressões, o preconceito tomou a forma da opinião religiosa, que, misturando às crenças uma visão também naturalista da sexualidade, traduz-se na versão segundo a qual a heterossexualidade sendo a forma sexual herdada da natureza pelo homem e – sendo a natureza uma criação de Deus... Javé, Allah, os termos variam conforme as crenças... – tudo que a essa forma contraria, não apenas contraria a natureza, contraria igualmente a vontade divina. Explica-se por que a homossexualidade é banida nas religiões para o campo dos “pecados”, “atos impuros”, “anomalias”, “vícios”, “depravações” ou, na erudição de seus chefes, representa “quando menos, desordem da identidade de gênero” – os termos são de Joseph Ratzinger, logo após tornar-se Bento XVI. (SOUZA FILHO, 2009, p, 9-10).

O cuidado da religião frente ao pecado levou ao desenvolvimento de todo um discurso de condenação e vigilância sobre práticas homossexuais, que permearam as culturas ocidentais e até orientais, como no caso do mundo muçulmano, que também tem uma cultura que sofre forte influência dos conceitos mosaicos.

Esta formação cultural refletiu-se até mesmo na ciência, que ainda incipiente no século XIX, buscou, em muitos casos, justificar preconceitos.

De fato, era uma ciência feita de esquivas, já que, na incapacidade ou recusa em falar do próprio sexo, referia-se sobretudo às suas aberrações, perversões, extravagâncias excepcionais, anulações patológicas, exasperações mórbidas. Era, também, uma ciência essencialmente subordinada aos imperativos de uma moral, cujas classificações reiterou sob a forma de normas médicas. A pretexto de dizer a verdade, em todo lado provocava medos; atribuía às menores oscilações da sexualidade uma dinastia imaginária de males fadados a repercutirem nas gerações; afirmou perigosos à sociedade inteira os hábitos furtivos dos tímidos e as pequenas e mais solitárias manias; no final dos prazeres insólitos colocou nada menos do que a morte: a dos indivíduos, a das gerações, a da espécie. (FOUCAULT, p. 53, 1988).

Hoje, a ciência ainda carrega muitos discursos resultantes desta tendenciosidade, e que começaram a ser revisados durante o século XX em um processo que prossegue até os dias de hoje, no século XXI. Em muitas áreas do conhecimento, o efeito dos preconceitos cristalizados no século XIX permanece.

[…] Em geral, curiosas doutrinas (médicas, psicológicas, religiosas) sobre a sexualidade humana são invocadas para “explicar” a homossexualidade em homens e mulheres. Porém, não se tratando mais do que de preconceito em forma de teoria e ciência, as conclusões dessas doutrinas são não apenas arbitrárias: os “dados” sobre os quais se apóiam são questionáveis ou inexistentes. (SOUZA FILHO, 2009, p, 98).

A psicologia por muito tempo também carregou preconceitos quanto a homossexualidade:

No caso das psicologias, teóricos que, confundindo casos clínicos individuais com supostas leis gerais de “estrutura”, mas arvorando-se à condição de poder teorizar sobre a homossexualidade, praticam generalizações errôneas e profundamente preconceituosas. É recente a crítica teórica e o combate político ao preconceito em torno da homossexualidade. É a partir dos anos 50, e sobretudo depois dos anos 70 do século XX, que se inicia a formulação crítica, apoiada na antropologia e na história, opondo-se ao discurso até então dominante – mesmo no chamado meio científico – que apontava o caráter patológico, marginal e desviante da homossexualidade. (SOUZA FILHO, 2009, p, 98-99).

A visão da normalidade da sexualidade heterossexual, reforçada pela ciência do século XIX, naturalizou as visões errôneas sobre este tema, tornando-se de senso comum, amplamente aceita na cultura ocidental.

É importante ressaltar que, no longo processo de colonização de imaginário de nossas sociedades, ganhou força uma concepção que corresponderia a uma naturalização da sexualidade humana, cujo efeito mais destacado é ter criado a idéia segundo a qual a heterossexualidade seria inata (a natureza daria os exemplos em todas as espécies), sendo então natural e normal. Indo da opinião popular a pretensas visões científicas, essa idéia da heterossexualidade como inata, constituída na natureza das espécies e, assim, igualmente na natureza animal da espécie humana, tornaria sem razão de ser qualquer questão sobre a sua origem. (SOUZA FILHO, 2009, p, 99).

A Análise Revisionista

Para começar uma análise revisionista do que se considera como natural, deve-se ter em consideração que um enunciado qualquer, seja científico, seja educacional ou mesmo religioso, deve sempre ser compreendido levando-se em consideração a época histórica na qual o mesmo surge, pois o mesmo sempre estará relacionado aos conhecimentos existentes e aos usos das palavras na época em questão. Assim, deve-se ter em mente, ao se analisar um discurso qualquer, que o conhecimento disponível em cada época e cultura permitiu certas visões e conclusões para seus autores, que certamente seriam diferentes se estivessem disponíveis a eles os conhecimentos que estão hoje, século XXI. A função de um ato de linguagem é “[...] uma função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz com que apareçam, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço.” (FOUCAULT, 1986, p. 99).

Esta análise, em muitos casos, permite a ressignificação de alguns termos, com a consequente mudança no sentido de todo o enunciado em questão, pois a prática discursiva esta relacionada diretamente a:

[…] um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa. (FOUCAULT, 1986, p.136).

Além disto, existe um padrão binário de raciocínio, comum nas culturas ocidentais, onde as categorias analíticas são sempre confrontadas numa divisão que tenta enquadrar as análises como dependentes da existência de dois lados, como nos exemplos de a presença e a ausência, ocerto e o errado, o normal e o anormal, o homem e a mulher, nós e eles. Sob a influência deste pensamento binário, tradicional na cultura ocidental, que trata as expressões de gênero correspondentes ao sexo biológico de uma pessoa e as relações sexuais entre homem e mulher como as únicas consideradas “naturais”, contrapondo-as com as relações homossexuais, esta lógica simplista e incompleta, influenciada pela leitura literal e parcial de fontes religiosas descontextualizadas, gerou todo um discurso que leva a crer que as categorias que diferem do padrão heteronormativo não deveriam existir, por contrariar a natureza humana. A homossexualidade passou assim a ser considerada, sobretudo a partir do reforço discursivo da ciência do século XIX, como anormal, qualificada como doença ou anomalia, e os indivíduos homossexuais passaram a ser vistos como formadores de uma categoria de pessoas à parte do centro da sociedade. Nesta lógica de divisão binária estabelece-se uma hierarquia, onde um dos lados sempre é tido como superior. O indivíduo heterossexual é assim considerado como detentor de uma sexualidade completa e o homossexual é visto como portador de uma ausência de completude, portanto representado como um ser inferior.

A heterossexualidade como forma única de expressão de sexualidade considerada como natural e portanto legítima passou a ser natural para a maioria das pessoas, ou seja, ocorreu uma construção sócio-cultural de uma naturalidade acreditada, mas que não mais se compatibiliza com a realidade discernida pelas ciências atuais, que indicam fortemente a invalidade destes discursos. Por isso, é uma necessidade desnaturalizar esta construção sócio-histórica-cultural que promove um entendimento falso sobre a natureza da sexualidade humana.

O filósofo francês Jacques Derrida propôs a respeito da naturalização de normas que geram discriminações, via diversos discursos, desnaturalizar aquilo que não é natural, em um processo de desconstrução dos discursos (DERRIDA, 1973).

A desconstrução é uma estratégia que se vale da desmontagem dos enunciados de um discurso em seus termos, que leva ao questionamento sobre seus significados, considerando a estrutura da linguagem, que por sua vez é dependente da época e do espaço onde surge um enunciado. No caso do entendimento da diversidade da expressão da sexualidade e do gênero, significa trazer à luz, via esta análise, o fato de que a norma heterossexualista é uma construção social e histórica e o indivíduo central na sociedade é apenas uma construção, apesar destas coisas serem vistas como simplesmente naturais por nossa cultura, devido aos discursos transmitidos de geração em geração. Assim, em se falando de interpretações da sociedade e da natureza que conduzem à discriminações, torna-se necessária uma análise dos conceitos que sustentam os discursos discriminatórios para ressignificá-los sobre um novo alicerce de conceitos atualizados, permitindo a compreensão da realidade pelas pessoas e o abandono destas discriminações.

Neste processo de desconstrução de um enunciado, constatações das mais diferentes áreas científicas podem ser usadas, pois dados atualizados permitem perceber que o significado de termos como natural são mais precisamente definidos com o avanço dos estudos científicos, ou sejam, mudam em função do tempo.

Contribuições Científicas

Ao contrário do pensamento que confere à diversidade da expressão da sexualidade e a diversidade da expressão da identidade de gênero a classificação como ocorrências contrárias à natureza, que seria exclusivamente heterossexual, estudos científicos atuais, em diversas áreas do conhecimento, apontam para a naturalidade destas ocorrências na espécie humana. Nas ciências sociais, por exemplo, temos vários resultados de estudos em diferentes sociedades humanas que revelam sobre a sexualidade que: “Há ampla evidência etnográfica para demonstrar que esse tipo de categorização binária é culturalmente específica e não brota automaticamente do reconhecimento das diferenças nos papéis e nas aparências físicas.” (MOORE, 1997, p. 7).

Está claramente demostrado por estudos etnográficos que o que consideramos como natural ou anti-natural, nas expressões de gênero e da sexualidade, são apenas funções de questões culturais, ou seja, são um construto social, que muda de sociedade em sociedade. Os resultados de pesquisas indicam que não existe um padrão referencial universal, para gênero e para sexualidade a ser considerado como único a ser reconhecido ou legitimado.

Surgiu assim, para explicar o papel social dos indivíduos em relação ao seu sexo, o conceito de gênero:

O conceito de gênero foi criado para enfatizar o fato de que as identidades masculina e feminina são historicamente e socialmente produzidas. É suficiente observar como sua definição varia ao longo da história e entre as diferentes sociedades para compreender que elas não tem nada de fixo de essencial ou de natural. (SILVA, 2002, p. 105-106).

Para entender o conceito de gênero e sua diferença em relação ao conceito de sexo biológico, é necessário entender que os papéis atribuídos ao gênero mudam de sociedade para sociedade, indicando que são artificialmente, culturalmente construídos.

Nada é puramente natural no homem. Mesmo as funções humanas que correspondem a necessidades fisiológicas, como a fome, o sono, o desejo sexual, etc., são informados pela cultura: as sociedades não dão exatamente as mesmas respostas a estas necessidades. Afortiori, nos domínios onde não há constrangimento biológico, os comportamentos são orientados pela cultura. Por isso, a ordem; “Seja natural”, frequentemente feita às crianças, em particular nos meios burgueses, significa, na realidade: “Aja de acordo com o modelo da cultura que lhe foi transmitido”. (CUCHE, 2002, p. 11).

Assim, o comportamento que é considerado como natural em uma dada cultura é, na verdade, o que esta cultura delimita como comportamento natural.

Se todas as populações humanas possuem a mesma carga genética, elas se diferenciam por suas escolhas culturais. A noção de cultura é o instrumento adequado para acabar com as explicações naturalizantes dos comportamentos humanos. A própria natureza é interpretada pela cultura (CUCHE, 2002, p. 9).

A cultura interpreta a natureza humana e tende a considerar como natural o que é comumente aprendido por todos nesta mesma interpretação. A norma é assim naturalizada e tida como padrão natural de comportamento pelo senso comum das pessoas.

A natureza, no homem, é inteiramente interpretada pela cultura. As diferenças que poderiam parecer mais ligadas à propriedades biológicas, particulares como, por exemplo, a diferença de sexo, não podem ser jamais observadas “em estado bruto” (natural) pois, por assim dizer, a cultura se apropria delas “imediatamente”: a divisão sexual dos papéis e das tarefas nas sociedades resulta fundamentalmente da cultura e por isso varia de uma sociedade para outra. (CUCHE, 2002, p. 11).

Não é somente a ciência social, demonstrando o controle que a construção social de costumes exerce sobre a identidade de gênero e a expressão da sexualidade, que se dá diferentemente em cada sociedade, que permite basear fortes questionamentos sobre a naturalidade da heteronormatividade. Também na psicanálise encontramos indicativos da naturalidade de práticas sexuais diversas e de papéis diversos dos gêneros. Freud, já em 1905, traz a assertiva:

[...] a Psicanálise considera que a escolha de um objeto, independentemente de seu sexo -que recai igualmente em objetos femininos e masculinos- tal como ocorre na infância, nos estágios primitivos da sociedade e nos primeiros períodos da história, é a base original da qual, como consequência da restrição num ou noutro sentido, se desenvolvem tanto os tipos normais como os invertidos. Assim, do ponto de vista da Psicanálise, o interesse sexual exclusivo de homens por mulheres também constitui um problema que precisa ser elucidado [...]. (Freud, 1905, p. 146, nota acrescentada em 1915).

Freud expressa, já em sua época, a percepção de que as atividades sexuais humanas são reguladas pela restrição, ou seja, reguladas pela cultura, que as molda e acrescenta:

A pesquisa psicanalítica se opõe com o máximo de decisão que se destaquem os homossexuais, colocando-os em um grupo a parte do resto da humanidade, como possuidores de caraterísticas especiais. Estudando as excitações sexuais, além das que se manifestam abertamente, descobriu que todos os seres humanos são capazes de fazer uma escolha de objeto homossexual e que na realidade o fizeram no seu inconsciente. (Freud, 1905, p. 146, adição de 1915).

Freud toma a sexualidade homossexual como natural quando declara que os homossexuais não devem ser considerados em uma categoria à parte, como “como possuidores de caraterísticas especiais”. Isto também conduz a perceber que a categoria “homossexual” também é uma categoria culturalmente construída, na tentativa de classificar as pessoas em função de suas práticas, como se tais práticas configurassem algo fora da naturalidade e, portanto, fora de uma normalidade. Desta forma a palavra homossexual tampouco pode configurar-se como a identidade de um indivíduo.

As ciências biológicas, por sua vez, também contribuem com evidências irrefutáveis da naturalidade da diversidade de práticas sexuais em populações animais e, por consequência, no ser humano, que se enquadra na categoria dos primatas.

O biólogo Canadense Bruce Bagemihl, discute em sua obra clássica “Biological Exuberance: Animal Homosexuality and Natural Diversity” (BAGEMIHL, 1999), resultados de mais de duas centenas de pesquisas científicas e cita a ocorrência de relações homossexuais em mais de 300 espécies de mamíferos e aves, demonstrando que na natureza é claramente comum a ocorrência de sexo homossexual. Neste âmbito, as categorias dos primatas, a qual também pertence também a espécie humana, é a que traz exemplos mais próximos das práticas homossexuais observadas em seres humanos.

[...] entre primatas, comportamentos homossexuais são particularmente diversos, incluindo práticas como a de um macho ser montado por outro (em Macaca nemestrina, babuínos, orangotangos, chinpanzés e bonobos), monta com penetração anal (em Macaca arctoides, Saimiri sciureus) e monta com penetração anal levando à ejaculação (macacos japoneses, macacos rhesus, gorilas). Masturbação de outros machos também são relatadas, incluindo masturbação mútua (nos Macaca arctoides), podendo chegar à ejaculação (gibões). Foram relatados, ainda, contato genital-genital (nos bonobos) e felação (em Macaca arctoides). Outros comportamentos, talvez relacionados, incluem: cheirar/inspecionar as regiões anal/genital de outros machos (Macaca arctoides), exibir o pênis ereto para outros machos (Cercopithecus aethiops) e a preferência de machos por copular com parceiros do mesmo sexo e não do sexo oposto (rhesus). (FORASTIERI, 2006, p. 51-52 apud WERNER, 1998).

Ainda na categoria dos primatas, entre os macacos bonobos observa-se, entre fêmeas, práticas homossexuais claramente voltadas à busca de prazer:

Os Bonobos têm uma sociedade matriarcal, incomum entre os símios, é uma espécie completamente bissexual. Tanto os machos como as fêmeas realizam atos tanto heterossexuais como homossexuais. Aproximadamente 60% da atividade sexual da espécie são entre duas ou mais fêmeas. Esses primatas fazem sexo para resolver conflitos, pedido de desculpas, ou para obtenção de prazer. Passam boa parte do dia se estimulando, e sexo oral é extremamente comum. As fêmeas possuem clitóris bem maior do que a das humanas, atingem o orgasmo com extrema facilidade. (FURLANETTO; GROTH; JANZEN; CRETE, p. 3, 2013).

A farta documentação existente em pesquisas científicas de várias áreas da ciência deixam clara a normalidade do fenômeno das relações homossexuais na natureza e indicam também que o sexo não tem somente a função de procriação, fato que fica determinado na observação de primatas.

A ocorrência de sexo homossexual na natureza demonstra que a diversidade sexual é natural. Esta diversidade, que a psicologia descreve no ser humano, em seus mecanismos, uma vez interpretada pela cultura, dará origem as variações de identidade de gênero, que são construções sociais para a representação dos papéis sexuais naturais variados.

O trabalho de revisão de conceitos para a demonstração da naturalidade e normalidade da diversidade sexual é um trabalho de esclarecimento, que deve ser feito à luz de estudos científicos contemporâneos, que permitirão desenvolver no público uma outra visão sobre a sexualidade e o gênero adequados à realidade, pois:

Independentemente de tratar-se de uma escolha de vida sexual ou de uma questão de característica estrutural do desejo erótico por pessoas do mesmo sexo, a homossexualidade deve ser considerada, de agora em diante, como uma forma de sexualidade tão legítima quanto a heterossexualidade. Na realidade, ela é apenas a simples manifestação do pluralismo sexual, uma variante constante e regular da sexualidade humana. (BORRILLO, 2000, p. 14).


Considerações Finais

Áreas distintas das ciências trazem evidências que apontam para a conclusão de que a homossexualidade em seres humanos nada mais é do que uma ocorrência natural e regular.

Pela vertente das ciências humanas, a história e a etnografia demonstram que práticas homossexuais ocorrem em sociedades distintas, sendo aceitas ou reprimidas conforme cada cultura e cada época e que o gênero tem papel variável, sendo, portanto, socialmente construído. Resultados de pesquisas indicam que é a cultura que molda os comportamentos sexuais e os papéis a serem assumidos pelos indivíduos com relação ao seu sexo biológico ou praticado.

Na psicanálise, a evolução dos estudos no século XX também permitiu abandonar a ideia da existência de um desvio da normalidade sexual para a adoção da ideia da homossexualidade como uma manifestação normal da sexualidade humana, com o consequente abandono da proposição de terapias para o tratamento da homossexualidade.

As ciências biológicas, por sua vez, deixam clara a regularidade da homossexualidade na natureza e demonstra que o ser humano, como mamífero e primata, se insere neste quadro, ajustando-se perfeitamente, não fugindo a regra natural da manifestação plural da sexualidade.

Para as discussões públicas sobre o tema da diversidade da expressão da sexualidade e da identidade de gênero fica, então, indicada a necessidade de se revisar e esclarecer o conceito do que é realmente natural, sob a luz de diferentes ciências contemporâneas, desmistificando pensamentos que induzem a sérios equívocos e a sérias discriminações de pessoas em nossa sociedade, geradores de conflitos.

A desconstrução e análise crítica das concepções equivocadas acerca da natureza da sexualidade humana é necessária, porque estas permeiam toda a cultura, interferindo em decisões importantes, que baseadas em conceitos já ultrapassados pelo conhecimento atualizado, podem levar a consequências danosas não somente para indivíduos homossexuais e transgêneros, que deixam de ser reconhecidos como cidadãos plenos, mas para toda a sociedade, em função dos conflitos que o tratamento inadequado do tema permite perpetuar.

Por fim, em função de tudo o que a atual ciência expõe, fica evidente a artificialidade da normatização quando esta se configura como um limitador da expressão da natureza da sexualidade humana, impondo regras que eliminam práticas. Do contrário, na mesma medida em que ocorre o afrouxamento das regras normatizadoras, ou é dada a oportunidade de quebrá-las, a diversidade reprimida vem à tona, evidenciando a natural diversidade de comportamentos de gênero e de sexualidade humanos.


Referências

BAGEMIHL, Bruce. Biological Exuberance: Animal Homosexuality and Natural Diversity. New York: St Martin s Press, 1999.

BORRILLO, Daniel. Homofobia: História e Crítica de um Preconceito. 1 ed.Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2010.

CUCHE, Denys. A Noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: EDUSC, 1999.

DERRIDA. Jacques. GRAMATOLOGIA. São Paulo: Perspectiva, 1973.

FORASTIERI, Valter. ORIENTAÇÕES SEXUAIS, EVOLUÇÃO E GENÉTICA. Candombá – Revista Virtual, v. 2, n. 1, p. 50–60, jan – jun 2006 – UFBA, 2006.

FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense, 1986.

______. A História da Sexualidade I – A Vontade de Saber. 13 ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.

FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. (1905). Em Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud .Volume VII. Rio de Janeiro: Imago, 1972.

FURLANETTO, A.L.D.M.; GROTH, F.; JANZEN S.J. e CRETE P. Homossexualismo – Opção, Estratégia Ou Evolução? P@rtes (São Paulo), Outubro de 2013. Disponível em: http://www.partes.com.br/emquestao/ensaio_homosexualismo.pdf

MOORE, Henrieta. Understanding sex and gender. Companion Encyclopedia of Anthropology. Tradução de Júlio Assis Simões. Londres, Routledge, 1997.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do currículo. 2 ed. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 1999.

SOUZA FILHO, Alípio de. Diniz Rogério (Org.). A colonização do imaginário e a invenção da causa específica da homossexualidade.InEducação e diversidade sexual: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília: (Coleção Educação para Todos) - Ministério da Educação, 2011.

1Cis é um prefixo latino que significa “deste lado”. Cis é usado para designar uma pessoa que se sente pertencente ao gênero correspondente ao seu sexo biológico de nascimento e, ao mesmo tempo, tem práticas sexuais heterossexuais correspondentes ao seu sexo biológico.

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